Bem vindo ao Blog Pensamentos da Paula

Criei esse blog para brincar um pouco com as palavras, comentar coisas, falar sobre meus desejos, sonhos, vontades. Quero comentar também sobre livros legais que leio.

EDUCAÇÃO PARA A PAZ


EDUCAÇÃO  PARA  A  PAZ

Ubiratan D'Ambrosio *

I. Uma Conceituação de Paz
A problemática de paz deve ser o centro de nossas reflexões sobre o futuro. Violações da paz não se resumem em confrontos militares, que são as guerras. Na verdade, a paz é um conceito pluridimensional. Nosso objetivo deve ser atingir um estado de paz total, sem o que o futuro da humanidade estará comprometido.

Por paz total entendo a paz nas suas várias dimensões: a) a interior - estar em paz consigo mesmo; b) paz social - estar em paz com os outros; c) paz ambiental - estar em paz com as demais espécies e com a natureza em geral; d) paz militar - a ausência de confronto armado.

Paz não é apenas a inexistência de divergências e conflitos. As diferenças e, conseqüentemente, as divergências e conflitos, são parte da diversidade que caracteriza todas as espécies, e são, portanto, intrínsecas ao fenômeno vida. Cada indivíduo é diferente do outro. A homogeneização da espécie humana é algo que contraria frontalmente as leis biológicas e tem como resultado a anulação da nossa vontade individual, em outros termos, causa a subordinação da nossa consciência e a eliminação dos traços culturais. Essa homogeneização é hoje uma ameaça efetiva em vista das possibilidades atuais de manipulação genética.

A existência de diferenças é natural e o encontro com o diferente é, em todas as espécies vivas, essencial para a continuidade da espécie. Mas é incrível como, num curto tempo de sua presença neste planeta, a espécie humana tornou esse encontro um ato sujeito à arrogância, à inveja, à prepotência, à ganância e à agressividade. A ética tem como grande objetivo transcender esse comportamento.

II. Uma Reflexão Sobre o Comportamento Humano
Uma reflexão sobre a paz pressupõe uma abordagem teórica. Teorias resultam da escolha de categorias de análise. Para abordar a problemática da paz, trabalho com categorias que permitem entender a natureza humana e o fenômeno conhecimento, que é característico da nossa espécie. Nenhuma outra espécie animal revela conhecimento com as características da humana.

Devemos entender primeiramente o que é vida e como o ser humano se comporta como uma espécie diferenciada.

Minha visão de homem repousa sobre a análise das seguintes categorias: a) cosmos; b) planeta; c) vida, como a resolução das relações entre cada indivíduo, outro(s) e a natureza; d) sobrevivência do indivíduo e da espécie; e) homem, como uma espécie diferenciada; f) transcendência; f) intermediações, criadas pelo homem, entre indivíduo, outro(s) e natureza; g) comunicação; h) comportamento; i) conhecimento; j) consciência e ética.

O problema fundamental é entender a relação entre o indivíduo e o seu comportamento, isto é, entre o ser humano (substantivo) e ser humano (verbo).

Ao longo da sua curta história, o homem tem procurado explicações sobre quem é — e tem se acreditado o favorito de algum deus — sobre o que é — e tem se acreditado um sistema complexo de músculos, ossos, nervos e humores — sobre como é — e tem se acreditado uma anatomia com vontade, e sobretudo quanto pode — e tem se acreditado sem limitações à sua vontade e ambição.

Procurando entender quem é, o que é, como é, o homem constrói sistemas de explicações que se organizam como história, religião, ciência, arte. E na explicação do quanto pode, concebe o poder. Essas explicações determinam a construção de modos de comportamento e de conhecimento.

Temos avançado muito no conhecimento do ser humano. Mas a grande angústia existencial, que resulta de não se encontrar uma resposta satisfatória à questão maior "por quê sou?", dá origem a contradições na qualidade de ser humano.

As violações da dignidade humana na civilização moderna, que chegam até a exclusão e mesmo eliminação de indivíduos, levam alguns a duvidarem da viabilidade de uma sociedade eqüitativa. A agressividade desmensurada contra a natureza põe em risco a continuidade da espécie.

As distorções da maneira como o homem tem se acreditado induziram poder, prepotência, ganância, inveja, avareza, arrogância, indiferença. Neste trabalho vou refletir sobre esse comportamento pelo exame do cocnhecimento. O conhecimento tem sido utilizado para justificar nossas ações, muitas vezes desencorajando críticas e dando um caráter de verdade absoluta a crenças. Isso é particularmente notado no pensamento ocidental, fragmentado em disciplinas.

O grande pensador Sri Aurobindo (1872-1950) escreveu, numa das mais interessantes apreciações da cultura ocidental: "Para a filosofia ocidental uma crença intelectual fixa é a parte mais importante de um culto, é a essência de seu significado e o que o distingue dos outros. Assim são que as crenças formuladas fazem verdadeira ou falsa uma religião [uma teoria, uma filosofia, uma ciência], deacordo com sua concordância ou não com o credo de seus críticos."

O comportamento e o conhecimento se constroem sobre crenças intelectuais basilares, por muitos chamadas paradigmas. Comportar-se e conhecer são identificados com o fazer e o saber. Na filosofia ocidental, que culmina com a  chamada filosofia moderna, fazer e saber comparecem como ações distintas. O fazer está associado ao material, ao corpo, ao manual, ao colarinho azul. O saberestá associado ao espiritual, à mente, ao intelectual, ao colarinho branco.

As conseqüências dessa dicotomia e a valorização do saber sobre o fazer são evidentes na organização da sociedade moderna, na economia e na própria burocracia.Todo um processo de exclusão e de hierarquização está ancorado nessa dicotomia. Quem sabe manda e o fazer é interpretado como um ato de obediência.

A Vida Como Uma Tríade
O fenômeno da vida é inconclusivo e complexo, está em permanente transformação e sujeito a uma dinâmica da qual sabemos muito pouco. Identifico três elementos fundamentais para que a vida se realize, que represento no que chamo de triângulo da vida (subentende-se "indivíduo" e "outro" como da mesma espécie, e "natureza" como a totalidade planetária e cósmica):

                                            

Os três componentes, o indivíduo o outro e a natureza, são mutuamente essenciais. Vida significa a resolução desse triângulo indissolúvel. Nenhum dos três componentes tem qualquer significado sem os demais.

O indivíduo é um organismo vivo, complexo na sua definição e no funcionamento de seu corpo, que age em coordenação com o cérebro, órgão responsável pela organização e execução de suas ações. Um corpo e um cérebro mutuamente essenciais, uma só entidade.

Os diferentes órgãos de um indivíduo interagem para manter o organismo vivo. Mas essa interação não pode se limitar ao organismo. Na verdade, a interação não pode ser no organismo, mas na tríade indivíduo/outro/natureza. Essa interdependência mútua é que deve servir de fundamento para entender a vida e o comportamento dos seres vivos.

Em todas as espécies, na busca de sobrevivência, o indivíduo se sujeita a comportamentos vitais básicos [meios]: a) reconhece o outro; b) aprende; c) é ensinado; d) adapta-se; e) e cruza, com os objetivos [fins] de sobreviver e de dar continuidade à espécie.

Uma questão maior, ainda não respondida é: "Quais as forças que levam os seres vivos a esses comportamentos vitais?"1

O homem, como todo organismo vivo, é complexo na sua definição e no seu funcionamento, e está sujeito aos mesmos comportamentos vitais básicos de todo ser vivo. Busca sobrevivência. A sobrevivência depende da resolução do triângulo da vida, que se dá no momento e no local. É uma ação no presente espacial e temporal. Espaço e tempo significam o aqui e o agora.

Mas diferentemente dos demais seres vivos e mesmo das espécies mais próximas, o homem busca algo além da sobrevivência. Algumas vezes até rejeita sua sobrevivência.2

Esse algo mais é a superação do presente, estendendo sua percepção de espaço e de tempo para além do presente e dop visível. O homem incursiona no passado e no futuro. Indaga sobre o que e como foi, e sobre o que e como será. Procura explicações sobre o passado e predições sobre o futuro, transcendendo espaço e tempo, criando representações sobre o que não vê.

A busca desse algo mais leva a indagar sobre o fenômeno vida, para o que é necessário conhecer o cosmos e o nosso habitat — o planeta Terra. O cosmos tem sido uma das grandes indagações do ser humano. Explicar o cosmos tem sido uma das primeiras motivações para construir sistemas de conhecimento. Inserido no cosmos está o nosso planeta, a Terra. Têm havido muito progresso nas explicações sobre o cosmos e o planeta Terra, e conseqüentemente sobre o fenômeno vida, sempre revelando incertezas e contradições.

As Intermediações Criadas pela Espécie Humana
Onde se situa a diferença de comportamento entre a espécie humana e as demais espécies?

O comportamento humano resulta de duas grandes pulsões: 1. A sobrevivência, do indivíduo e da espécie que, como em toda espécie viva, se situa na dimensão do momento; 2. A transcendência do espaço e do tempo que, diferentemente das demais espécies, se situa numa outra dimensão, levando o homem a indagar "por quê?", "como?", "onde?", "quando?".

Sobrevivência e transcendência guardam uma relação simbiótica e distinguem o ser humano das demaisespécies. Na resposta às pulsões de sobrevivência e de transcendência surgem intemediações nas relações essenciais do indivíduo com a natureza e com o (s) outro (s) e o homem incursiona no passado, buscando explicações, e no futuro, buscando predições. Nesse incursionar gera conhecimento, que é reconhecido nas habilidades, nas técnicas, nos mitos e nas artes, nas religiões e nas ciências.

A diferença essencial entre a espécie humana e as demais espécies é o fato de termos criado, ao longo da nossa evolução, instrumentos, comunicação, principalmente a linguagem, e um sistema de produção, que servem de intermediações para a resolução do triângulo da vida:

                       

Criar e utilizar essas intermediações são possíveis graças ao encontro de comportamento e conhecimento. A percepção dos acertos e equívocos desse encontro é o que chamo consciência.3 No encontro com o outro, que também está em busca de sobrevivência e de transcendência, desenvolve-se a comunicação.

Valores
O comportamento de cada indivíduo é aceito pelos seus próximos quando subordinados a parâmetros, que denominamos valores, e que determinam os acertos e equívocos na produção e utilização das intermediações criadas pelo homem para sua sobrevivência e transcendência.

Valores, assim conceituados, relacionam os meios com os fins. Os fins constituem as grandes utopias de indivíduos e de sociedades, dos sistemas de explicações e dos mitos, da cultura. Os meios dependem dos instrumentos materiais e intelectuais de que dispomos, também dependentes da cultura. Assim, os valores são manifestações culturais.

Uma excursão pela história revela que novos meios de sobrevivência e de transcendência fazem com que valores mudem. Mas, alguns valores permanecem: a) respeito pelo outro (o diferente); b) solidariedade com o outro; c) cooperação com o outro. Esses valores constituem uma ética maior, sem a qual a qualidade de ser humano se dilui.

Mas por que a humanidade caminha em direção contrária a essa ética, sema a qual a espécie humana não pode sobreviver?

Essa questão maior tem sido a motivação dos grandes modelos filosóficos, religiosos e científicos. Os modelos filosóficos, religiosos, científicos propõem "verdades" que têm sido aceitas como absolutas e que constituem sistemas de valores que guiam o comportamento humano. Os valores mudam, subordinados ao que prevalece nos sistemas sociais e econômicos.

Em muitas sociedades, a prioridade passa a ser a defesa do sistema de valores. A questão fundamental, que é a busca de sobrevivência associada à transcendência, pasa aser subordinada à defesa do sistema de valores (fundamentalismos). É oportuno lembrar a citação de Aurobindo no início deste trabalho. Os sistemas de valores, da mesma maneira que as ciências e as religiões, são vistos na cultura ocidental como saberes concluídos, que têm uma arrogância intrínseca à própria concepção do concluído.

O conhecimento disciplinar, e consequentemente a educação, tem priorizado a defesa de saberes concluídos, inibindo a criação de novos saberes e determinando um comportamento social a eles subordinado.4 Ele evoluiu para a multidisciplinaridade, praticada nas escolas tradicionais, e para a interdisciplinaridade, ainda difícil de ser conseguida. Mas o verdadeiro avanço, abrindo novas possibilidades para o conhecimento, é a transdisciplinaridade.5

A transdisciplinaridade, assumindo a inconclusão do ser humano, rejeita a arrogância do saber concluído e das certezas convencionadas e propõe a humildade da busca permanente. O comportamento humano responde às pulsões de sobrevivência e de transcendência, que estão intimamente ligados. Vai além de comportamento orientado pelo cérebro. Existe algo mais: a mente, que tem intrigado os filósofos desde a antiguidade, e a consciência, igualmente intrigante.

Onde se situam mente e consciência? No cérebro, que vem sendo tão bem estudado pelos reurologistas? Ou no que se costuma chamar inteligência, hoje bem estudada, inclusive no âmbito de uma disciplina que curiosamente se denomina inteligência artificial? E o que é inteligência? 6 As teorias vão surgindo, vão sendo aceitas ou recusadas, algumas marginalizadas e outras refutadas. Algumas idéias, que são aceitas por se desviarem pouco das anteriores, se tornam as novas explicações e encontram seu espaço nas universidades. 7 Outras idéias se desviam dos chamados paradigmas e criam novos paradigmas. 8 As teorizações sobre a evolução do cocnhecimento em geral se limitam a apenas alguns dos fatores que participam da dinâmica do conhecimento.

Uma categoria fundamental para a análise do comportamento humano é o poder, entendido no sentido amplo da organização sobre a qual se fundam famílias, sociedade e nações. As sociedades humanas modernas são grupos de indivíduos que se comportam em conformidade com normas e valores estabelecidos ao longo da história, resultado de tradições e eventos.

III. Uma Proposta Educacional
Por meio de sistemas educacionais, as sociedades transmitem e inculcam valores que servem de apoio às normas vigentes e aos estilos de comportamento, sobre os quais se apóia a estrutura de poder. Embora para muitos possa parecer um paradoxo, nesses mesmos sistemas educacionais estão embutidos os instrumentos intelectuais que permitem a crítica e a contestação do poder, eventualmente a sua modificação. Juntamente com a transmissão de valores, um sistema educacional tem como meta o desenvolvimento da capacidade de crítica e de contestação.9

Há modelos educacionais nos quais não se desenvolvem a capacidade de crítica e de contestação. São baseados na obediência.10 Mas o que se nota é que mesmo na transmissão pura e simples de valores, os sistemas educacionais muitas vezes falham. Sempre ficamos chocados quando vemos uma pessoa com um bom nível educacional comportando-se de maneira criticável, algumas vezes até abominável. Por que a educação muitas vezes não influi no seu comportamento? Paradoxalmente, o conhecimento é muitas vezes utilizado para um comportamento ainda mais criticável.11

Uma discussão sobre valores não pode escapar de umareflexão sobre a relação meios-fins. E uma discussão sobre educação tampouco pode escapar dessa relação, que se traduz em afirmações sobre a importância da educação. São valores associados à ação educativa. Espera-se o efeito da ação educativa no comportamento dos indivíduos. O currículo, que é aestratégia da ação educativa, tem como finalidade maior o comportamento dos indivíduos que passam pelo processo. Como o currículo é baseado em cocnhecimento, em saberes e fazeres, somos levados a uma questão maior: como se relacionam conhecimento e comportamento?

Obediência e Ética
Valores e obediência muitas vezes se confundem com conhecimento e comportamento. A obediência é muitas vezes resultado de temor de represálias pela autoridade legítima. Poder é muitas vezes identificado associado à obediência. Desde o temor de punição eterna, num cenário místico, até o temor de punições físicas, como suplício, mutilação e morte, materiais, como multas e confiscos, e morais, como cesura, confinamento e exclusão.

Mas a ameaça de represálias gralmente não está no discurso que respalda o poder. A obediência se obtém de maneira mais sutil, sem recurso às ameaças. Muitas vezes se dá por meio de recompensas, tais como prêmios, distinções e cooptação nos círculos de poder.12 Mas sobretudo graças à açeitação de um sistema de valores.

No sistema de valores estão incorporadas as atitudes com relação ao outro, que se estendem a grupos de outros identificados por características étnicas, culturais e religiosas. A partir daí se constroem os fundamentalismos, comuns nas sociedades, com os mais variados graus de intensidade.

A percepção de uma ameaça no outro é o ponto de partida para a intolerância do diferente, e a partir daí se parte para a defesa preventiva, que leva inevitavelmente ao ataque.

Uma outra forma de obediência que resulta de um sistema de valores é assumir como normal a prática de consumismo irresponsável, ganância desmedida e corrupção. São os ingredientes sobre os quais repousa o abuso e posteriormente a  agressão ambiental. Muitas vezes nos deparamos com indivíduos que tiveram educação esmerada e adquiriram um bom nível de conhecimento, mas que têm um comportamento agressivo com relação ao ambiente.

Devemos subordinar o sistema de valores a uma ética maior, uma ética que cruze culturas e que coloque prioridade na sustentação do triângulo da vida. Uma proposta é a ética da diversidade: 1) Respeito pelo outro, com todas as suas diferenças; 2) Solidariedade com o outro nasatisfação das necessidades de sobrevivência e transcendência; 3) Cooperação com o outro na preservação do patrimônio natural e cultural comum. Essa é uma ética que conduz à paz interior, à paz social, à paz ambiental e consequentemente, à paz militar. Atingir essa paz total é o objetivo maior da educação. Como organizar os sistemas educacionais em função desse objetivo maior?

Sobre o Currículo
Como estratégia da ação educativa global, proponho um currículo dinâmico, que foge radicalmente das propostas conteúdistas que dominam o currículo atual. Uma profunda reconceituação de currículo tem sido rejeitada por educadores, em geral. Mas o que vem a ser currículo? É muito importante que se reconheça que uma aula ou prática educativa é um processo. A esse processo chamamos ação educativa, que como toda ação, resulta de uma estratégia. Para o desempenho da ação educativa o professor vai munido de uma estratégia. Daí a definição que tenho adotado: currículo é a estratégia para a ação educativa

O ponto crítico é a passagem de um modelo de currículo cartesiano, estruturado previamente à prática educativa, a um currículo dinâmico, que reflete o momento socio-cultural e a prática educativa nele inserido. O currículo dinâmico é contextualizado no sentido amplo. 

O currículo cartesiano, tradicional, é baseado nos componentes objetivos, conteúdos e métodos. Obedece a definições obsoletas de objetivos do que era a sociedade — objetivos conservadores. Ensina conteúdos que num determinado momento histórico tiveram sua importância, mas que agora são ancorados em argumentos insustentáveis. 

E assim eles são transmitidos com métodos definidos a priori, sem conhecer os alunos e baseados numa estratificação destes em faixas etárias e "níveis de desenvolvimento intelectual" estabelecidos numa situação de laboratório. Tais objetivos, conteúdos e métodos não reconhecem as experiências e as expectativas de cada indivíduo, que resultam de sua história individual e coletiva. Sintetizando: são conclusões em geral inúteis, transmitidos com uma metodologia falsificada e falsificadora.
O currículo dinâmico parte do reconhecimento que nas sociedades modernas as experiências e interesses dos indivíduos são distintas e, portanto, as classes são heterogêneas, tendo alunos de interesses variados e detentores de uma enorme gama de conhecimentos prévios. Todos esses alunos têm potencial criativo, porém orientados em direções imprevisíveis e com as motivações mais variadas. 
O currículo, isto é, a estratégia da ação educativa, depende de facilitar a troca de informações, conhecimentos e habilidades entre alunos e professor/alunos, mediante uma socialização de esforços em direção a uma tarefa comum. Essa tarefa comum pode ser um projeto, uma discussão, uma reflexão e inúmeras outras modalidades de ação comum, em que cada indivíduo contribui com o que sabe, com o que tem, com o que pode, levando ao máximo o seu empenho na concretização do objetivo comum. 
Resumindo: o currículo dinâmico é uma estratégia de ação comum e repousa sobre três etapas que se desenvolvem simultaneamente:
a) motivação, resultado de condições emocionais e da interface passado/futuro;
b) elaboração de novo conhecimento, mediante a troca/construção/reconstrução de conhecimentos;
c) socialização, por meio da realização de tarefas comuns.
Socialização.  Esse conceito de currículo serviu de fundamento para um curso de Mestrado que coordenei, a partir de 1975, na Universidade Estadual de Campinas, em convênio com o Ministério de Educação e com a Organização dos Estados Americanos, destinado preparar liderança para inovações no Ensino de Ciências. 13
O curso era focalizado na problemática da paz no sentido pluridimensional discutido neste trabalho. Essa foi minha primeira organização das idéias expostas neste trabalho como uma efetiva proposta curricular. Foi a oportunidade de se investigar a possibilidade de uma prática educacional baseada na transdisciplinaridade.

Outras maneiras de propor a transdisciplinaridade vêm surgindo de muitas áreas do conhecimento. A visão holística, a complexidade ou pensamento complexo, as teorias da consciência, as ciências da mente, a inteligência artificial e inúmeras outras propostas transdisciplinares vêm sendo elaboradas e se tornando conhecidas.

O pensamento complexo tem sido particularmente destacado. Humberto Mariotti deixa bem claro o que se pretende com o pensamento complexo: “Referindo a algo que pode atenuar um modo de viver segundo o qual com enorme freqüência a palavra é separada do real, a justiça se preocupa menos com o sofrimento dos homens do que com a letra da lei, e esta busca verdades que pouco ou nada têm a ver com o cotidiano."14 E propõe cinco saberes que caracterizam o pensamento complexo e que constituem a essência de uma outra maneira de estar no mundo:
a) saber  ver;
b) saber  esperar;
c) saber conversar; d
) saber amar;
e) saber abraçar.

Esses saberes implicam comportamentos. O abraço se inicia a partir da mão estendida, que é o ponto de partida para o processo de busca da espiritualidade por meio do encontro com o outro.
 Nesses comportamentos está implícito um sistema de valores. Vivenciar esse sistema de valores no cotidiano é o código de conduta que pode redimir o ser humano. Esse vivenciar implica, muitas vezes, desobediência a ordens e normas de conduta. Alguns se sentem encorajados a essa desobediência numa ação de grupo. São transgressões que, mesmo sujeitas a repressão, deflagram os grandes movimentos sociais.

Outros, mesmo sem estar amparados por alguma forma de poder e, às vezes, até contrariando a autoridade, têm a coragem de agir só, fazendo valer o maior dom de ser humano, que é o exercício de sua livre vontade. Cumprir ordens, em conflito com a vontade, não é suficiente como código de conduta. A conduta que pode conduzir o ser humano à redenção resulta de se atingir o estado de consciência, quando conhecimento e comportamento estão solidários.
                       
(Este texto corresponde a palestra feita por ocasião do 5° Congresso da Escola Particular Gaúcha, patrocinado pelo SINEPE/RS em Porto Alegre, de 19 a 21 de julho de 2000.)

Notas

Economia do conhecimento” e “riqueza do saber” tornaram-se clichês.
1.No seu excelente livro, já clássico, Humberto Maturana e Francisco Varela: A Árvore do Conhecimento. As bases biológicas do entendimento humano, Editorial Psy II, Campinas, 1995, introduzem o conceito de autopoiesis para explicar como um organismo se mantém vivo.   
2. A espécie humana é a única a praticar suicídio. Há uma forma de suicídio de células cancerosas e mesmo a prática individual do suicídio em algumas espécies, mas obedecendo a mecanismos fisiológicos. Suicídio sem o objetivo maior de dar continuidade à espécie é conhecido somente na nossa espécie.
3.Ver Ubiratan D’Ambrosio: A Era da Consciência, Editora Fundação Peirópolis, São Paulo, 1997.
4. Particularmente prejudicial para a evolução da humanidade tem sido a maneira como o estabelecimento, o poder, expropriou as religiões derivadas do judaísmo e a ciência que delas resultou e criou mecanismos para desencorajar o surgimento de novas idéias. A academia, utilizando mecanismos brutais de marginalização e exclusão, tais como recusa a emprego, impecilho à publicação, bloqueio a facilidades de pesquisa, difusão de rumores desabonadores e outras tantas estratégias para desencorajar o novo pensar. Há inúmeros exemplos desse tipo de ação. Ver o estudo de Brian Martin: Strategies for Dissenting Scientists, Journal of Scientific Exploration, vol. 12, n°4, 1998; pp.605-616 e a bibliografia.  
5. Ubiratan D’Ambrosio: Transdisciplinaridade, Editora Palas Athena, São Paulo, 1997.
6. Cérebro, mente, pensamento, inteligência, consciência são alguns dos termos usados para se escapar do dualismo corpo/mente. Ver o livro do neurofisiologista William H. Calvin: How Brains Think. Evolving Intelligence, Then and Now, Basic Books, New York, 1996.
7. Essa é, em essência, a explicação da evolução do conhecimento proposta por Karl Popper.
8. Essa é uma outra explicação sobre a evolução do conhecimento, que Thomas Kuhn chamou revolução científica.
9. Ver  Ubiratan D’Ambrosio: Educação para uma Sociedade em Transição, Papirus Editora, Campinas, 1999.
10. Entendo obediência no comportamento e no conhecimento. Voltarei ao tema mais adiante.
11. Basta atentar para o fato que um dos crimes mais execráveis, que é o seqüestro para retirada de órgãos, só é possível com a participação de médicos e engenheiros com formação especializada.
12. Saborear migalhas dá a sensação de se estar participando do banquete!
13. Ver Ubiratan D’Ambrosio, organizador: Ensino de Ciências e Matemática na América Latina, UNICAMP/Papirus Editora, Campinas, 1988.
14. Humberto Mariotti: As Paixões do Ego. Complexidade, Política e Solidariedade, Editora Palas Athena, São Paulo, 2000; p.324.
(2003)

* UBIRATAN D'AMBROSIO é matemático nascido no Brasil. Professor Emérito da UNICAMP, São Paulo (Matemática). Consultor da UNESCO e da Organização dos Estados Americanos (OEA). Professor visitante da Universidade Regional de Blumenau. Professor de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, além de outras universidades. Membro do Conselho da Pugwash Conferences on Science and World Affairs. Publicou, entre outros livros: Educação para uma Sociedade em Transição (Campinas, Papirus), Etnomatemática: Elo Entre as Tradições e a Modernidade (Belo Horizonte, Autêntica, 2001) e Etnomatematica (Prefazione di Bruno D’Amore), Pitagora Editrice, Bolonha, 2002.
E-mail — ubi@usp.br

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